“Quando eu não estiver por perto…”

Eu conheço o medo de ir embora
O futuro agarra a sua mão
Será que é o trem que passou
Ou passou quem fica na estação?

“O que você espera conseguir com isso?!”, vociferou ela antes de acender o cigarro. Acabara de sentar. Cabelos castanhos molhados.

“Sinceramente, de você eu não espero mais do que educação”, ele respondeu enquanto olhava displicentemente o restaurante vazio. Sempre odiara o cigarro. Lembrava as náuseas e a merda toda pela qual passou na reabilitação. Pensava naquilo como um pequeno invólucro de vômito vendido em lugares baratos. Era o melhor símbolo das coisas que não mais suportava nela.

“Você precisa ser mesmo cheio de arrogância para me telefonar de madrugada”, disse ela entre jatos de fumaça cancerígena.

Não sabia o que o fizera ligar àquela hora, passados quatorze meses da separação. Até entendia quão traumática tinha sido para ambos, mas isso devia soar como página virada, música da estação errada. Hoje, porém, aquele fantasma lhe telefonou no meio da noite marcando um encontro. Pensava em como explicaria ao seu noivo se ele acordasse antes da volta.

Desviou o olhar e avistou a rua através do vidro da janela. A imprevisibilidade da situação fazia com que ela lembrasse datas passadas. Dias embriagados, Oswaldo Montenegro no rádio e a sinuosa rodovia do litoral sul.

Impressionava o fato de ele continuar o mesmo. Ela não sabia se admirava ou invejava aquilo. Exceto o amargor nas palavras, ele parecia exatamente o garoto daquele começo de noite a muitos anos atrás. O mesmo olhar melancólico que a fizera se apaixonar. Cabelos desgrenhados e a indefectível barba de três dias. Poderoso como se lembrava ele ter sido um dia no passado…

Ele interrompeu aquelas divagações: “Arrogância, você diz. Eu vejo alguém sozinho e bêbado, a procura de beijos sem paixão por esta noite apenas e nada mais”.

“Esperava que você fosse mais maduro. Entendesse que apenas podemos ser amigos”.

“Ah, hoje à noite eu também espero que você não minta. Não se sinta capaz de enganar quem não engana a si mesmo”.

“Não acredito que estou ouvindo isso! De todas as pessoas que conheço, você é a mais desgraçadamente enganada. Vivendo de glórias passadas por meses sem fim. Algum dia você crescerá?”. Acendeu o segundo cigarro. Sentia-se um pouco mais forte agora, era esse o efeito que o tabaco causava nela.

“É verdade, se maturidade é ter todas as pretensas seguranças que você pensa ter hoje, então você é muito mais madura do que jamais serei”.

“Do que você está falando?! Só espero que não seja do meu noivo ou da nossa nova casa. Se você fosse normal, almejaria essas coisas, ao invés de entrar e sair de clínicas de reabilitação… Desculpe, eu não queria dizer isso”.

“Se eu fosse ‘normal’, talvez dissesse que minhas entranhas ainda clamam por você como elas costumavam fazer antes. Assim levaria você mais facilmente para a cama. Beijos sem paixão, lembra? Não romantize as coisas”.

A garçonete com cara de sono passou e ele pediu mais uma dose de uísque paraguaio. Seu copo ainda nem estava vazio, mas ele gostava de ouvir o som do gelo derretendo dentro do líquido.

“Sabe o que eu espero de você, cara? Que você olhe para si mesmo e seja capaz de se perdoar”.

“Eu também espero que você seja capaz de se perdoar por ter vendido a alma ao diabo”.

“E que diabo seria este?”

“O diabo da caretice”.

Silêncio.

A garçonete traz o pedido e mesmo ela sente o constrangimento entre ambos.

Ela tomou a iniciativa, “Escuta, só porque fizemos o melhor amor que havia no mundo, não quer dizer que devíamos ficar juntos. As relações humanas não são duráveis”.

“É isso que diz pra si mesma, não é? Mas você está errada, não fizemos o melhor amor do mundo. Meu crime foi acreditar, por um tempo, que só se vive uma vez”.

“Não me descarte assim, eu não estou quebrada! Além do mais, você sabe: ambos temos os mesmos defeitos. É engraçado acharmos que sempre sabemos tudo ao nosso respeito”.

“Não mais. Você pode não perceber (quem sabe?), mas nós finalmente trocamos de pele. Seguimos em frente. Isso torna a vida tão leve”.

Ele se levantou, pegou um cigarro na carteira dela e acendeu. Precisava de alguma coisa que o fizesse sentir algo. Uma prova de que tudo dentro dele não era feito de pedra.

“Onde você está indo?!”, ela disse ao vê-lo se dirigindo à saída. A idéia de não o ver nunca mais lhe atormentou surpreendente pela última vez.

“Você não tem as respostas que pensei. Talvez elas nem existam mais. Um dia desses, num desses encontros casuais, talvez a gente encontre uma explicação”, ele disse sobre os ombros.

“Você vai me reconhecer?”, implorou ela.

“Não foi fácil esquecer você, baby. Talvez eu diga ‘minha amiga, pra ser sincero, prazer em vê-la’. Até mais”.

E desceu a escada assoviando uma canção fora de moda.

*Para se ler ouvindo:

Pra Ser Sincero / 3X4Engenheiros do Hawaii;

The Last Time I Saw RichardJoni Mitchell;

Estrada Nova / EstrelasOswaldo Montenegro;

Falando Sério / Proposta Roberto Carlos;

Lipstick Vogue / This Year’s GirlElvis Costello;

It ain’t me, babe Bob Dylan;

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7 comentáriosDeixe um comentário

  1. […] This post was mentioned on Twitter by João Paulo de Sousa , João Paulo de Sousa . João Paulo de Sousa said: “Quando eu não estiver por perto…” https://naestradaaopordosol.wordpress.com/2010/09/29/quando-eu-nao-estiver-por-perto/ […]

  2. “se for pra sempre seja breve
    seja firme seja leve
    seja bravo seja breve”

  3. Gostei da criatividade.

  4. Faz tempo que eu to com vontade de fumar marlboro. É Hj.

  5. Uau. Isso é bárbaro. Os resquícios de fim sempre habitam nas pobres almas que acreditam em alguma coisa. Mais precisamente nas daquelas almas que ousam amar…pobre alma!

  6. […] E até isso passou. […]

  7. […] se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. Pense que essa conversa poderia ter sido pior. Esteja feliz que em algum lugar dentro de você ainda existe a coragem de correr […]


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